O aborto é um tema que causa muita polêmica. Há os que não o aceitam em hipótese alguma e há aqueles que olham a questão do sofrimento da mãe com um filho indesejado. Mas é indiscutível que o aborto, sendo legal ou não, é um problema de saúde pública. Milhares de moças morrem todos os anos em clínicas clandestinas utilizando métodos questionáveis e sem regulamentação.
O blog Nação Jovem compartilha artigo do Dr. Dráuzio Varella, publicado no blog "www.escrevinhador.com.br", que faz uma reflexão interessante sobre o tema:
A questão do aborto
Por Drauzio Varella,
Desde que a pessoa tenha dinheiro para pagar, o aborto é permitido no Brasil. Se a mulher for pobre, porém, precisa provar que foi estuprada ou estar à beira da morte para ter acesso a ele. Como consequência, milhões de adolescentes e mães de família que engravidaram sem querer recorrem ao abortamento clandestino, anualmente.
A técnica desses abortamentos geralmente se baseia no princípio da
infecção: a curiosa introduz uma sonda de plástico ou agulha de tricô
através do orifício existente no colo do útero e fura a bolsa de líquido
na qual se acha imerso o embrião. Pelo orifício, as bactérias da vagina
invadem rapidamente o embrião desprotegido. A infecção faz o útero
contrair e eliminar seu conteúdo.
O procedimento é doloroso e sujeito a complicações sérias, porque nem
sempre o útero consegue livrar-se de todos os tecidos embrionários. As
membranas que revestem a bolsa líquida são especialmente difíceis de
eliminar. Sua persistência na cavidade uterina serve de caldo de cultura
para as bactérias que subiram pela vagina, provoca hemorragia, febre e
toxemia.
A natureza clandestina do procedimento dificulta a procura por
socorro médico, logo que a febre se instala. Nessa situação, a
insegurança da paciente em relação à atitude da família, o medo das
perguntas no hospital, dos comentários da vizinhança e a própria
ignorância a respeito da gravidade do quadro colaboram para que o
tratamento não seja instituído com a urgência que o caso requer.
A septicemia resultante da presença de restos infectados na cavidade
uterina é causa de morte frequente entre as mulheres brasileiras em
idade fértil. Para ter ideia, embora os números sejam difíceis de
estimar, se contarmos apenas os casos de adolescentes atendidas pelo SUS
para tratamento das complicações de abortamentos no período de 1993 a
1998, o número ultrapassou 50 mil. Entre elas, 3.000 meninas de dez a
quatorze anos.
Embora cada um de nós tenha posição pessoal a respeito do aborto, é
possível caracterizar três linhas mestras do pensamento coletivo em
relação ao tema.
Há os que são contra a interrupção da gravidez em qualquer fase,
porque imaginam que a alma se instale no momento em que o espermatozoide
penetrou no óvulo. Segundo eles, a partir desse estágio microscópico, o
produto conceptual deve ser sagrado. Interromper seu desenvolvimento
aos dez dias da concepção constituiria crime tão grave quanto tirar a
vida de alguém aos 30 anos depois do nascimento. Para os que pensam
assim, a mulher grávida é responsável pelo estado em que se encontra e
deve arcar com as consequências de trazer o filho ao mundo, não importa
em que circunstâncias.
No segundo grupo, predomina o raciocínio biológico segundo o qual o
feto, até a 12ª semana de gestação, é portador de um sistema nervoso tão
primitivo que não existe possibilidade de apresentar o mínimo resquício
de atividade mental ou consciência. Para eles, abortamentos praticados
até os três meses de gravidez deveriam ser autorizados, pela mesma razão
que as leis permitem a retirada do coração de um doador acidentado cujo
cérebro se tornou incapaz de recuperar a consciência.
Finalmente, o terceiro grupo atribui à fragilidade da condição humana
e à habilidade da natureza em esconder das mulheres o momento da
ovulação, a necessidade de adotar uma atitude pragmática: se os
abortamentos acontecerão de qualquer maneira, proibidos ou não, melhor
que sejam realizados por médicos, bem no início da gravidez.
Conciliar posições díspares como essas é tarefa impossível. A simples
menção do assunto provoca reações tão emocionais quanto imobilizantes.
Então, alheios à tragédia das mulheres que morrem no campo e nas
periferias das cidades brasileiras, optamos por deixar tudo como está. E
não se fala mais no assunto.
A questão do aborto está mal posta. Não é verdade que alguns sejam a
favor e outros contrários a ele.
Todos são contra esse tipo de solução,
principalmente os milhões de mulheres que se submetem a ela anualmente
por não enxergarem alternativa. É lógico que o ideal seria instruí-las
para jamais engravidarem sem desejá-lo, mas a natureza humana é mais
complexa: até médicas ginecologistas ficam grávidas sem querer.
Não há princípios morais ou filosóficos
que justifiquem o sofrimento e morte de tantas meninas e mães de
famílias de baixa renda no Brasil. É fácil proibir o abortamento,
enquanto esperamos o consenso de todos os brasileiros a respeito do
instante em que a alma se instala num agrupamento de células
embrionárias, quando quem está morrendo são as filhas dos outros. Os
legisladores precisam abandonar a imobilidade e encarar o aborto como um
problema grave de saúde pública, que exige solução urgente.
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